Ao lado do "Anjo da
Morte"
Ella Lingens, embora
"ariana de raça pura "foi levada para Auschwitz por esconder judeus;
como médica, foi obrigada a trabalhar ao lado de Mengele, o "Anjo da
Morte", e testemunhou algumas das atrocidades por este praticadas. Faleceu
em 2002.
"Tinha um futuro promissor à sua frente. EllaLingens
fora uma das alunas mais brilhantes da Faculdade de Medicina, casara com um
colega e tinha um filho de caracóis louros que estava a aprender a balbuciar
"mamã". Acabou em Auschwitz, a trabalhar sob as
ordens do "Anjo da Morte", Josef Mengele." Adam Pieczynski
No dia em que passam
70 anos da libertação dos prisioneiros, e para assinalar um acontecimento
histórico, o Expresso disponibiliza online um texto publicado originalmente a
28 de janeiro de 1995.
Ella Lingens
era admirada nos cafés de Viena pelas suas convicções sociais-democratas, andar
emancipado e provocante, e fascinantes olhos azuis. Quando escondeu, no andar
onde morava, judeus perseguidos pelos nacionais-socialistas e os ajudou a sair
do país, não sabia que uma cadeia de infortúnios e denúncias a levaria ao pior
pesadelo da sua vida.
Como
prisioneira em Auschwitz, teve de trabalhar sob as ordens do "Anjo da
Morte", Josef Mengele, um médico tão brilhante como diabólico, que
distribuía chocolates pelas crianças judias e ciganas, antes de as submeter a
experiências e torturas atrozes ou de as conduzir pessoalmente para as câmaras
de gás, no seu descapotável verde.
Agora, aos
87 anos, meio século depois da libertação de Auschwitz, Ella conserva ainda a
determinação e a vontade de viver que a salvaram da morte. A sua figura frágil,
encolhida num enorme cadeirão, domina suavemente o ambiente da casa rústica
onde mora, nos arredores de Viena.
EllaLingens
foi obrigada a escolher entre a vida e a morte dos seus doentes, "como se
fosse Deus", pois não podia desperdiçar medicamentos escassos, em casos
que pareciam irreversíveis. "A quem dar os medicamentos, a uma mãe com
muitos filhos ou a uma rapariga nova?" - tinha de perguntar a si mesma.
"A quem administrar uma injecção, a um velho que, em qualquer caso, vai
morrer, ou dividi-la por dois jovens?"
EllaLingens
era catalogada pelos burocratas do Terceiro Reich como "uma ariana de raça
pura", o que lhe permitiu esconder os seus amigos judeus sem que
desconfiassem dela. Na "Noite de Cristal", em Novembro de 1938,
quando os judeus foram espancados nas ruas, as suas casas e lojas destruídas e
os seus livros queimados, alguém tocou à porta do andar onde moravam os
Lingens. Era o engenheiro Wiesenfeld, que chegou de pijama, a tremer, para se
refugiar em casa deles, trazendo na mão uma escova de dentes.
Pela janela
chegava um ruído insuportável, de vidros a estilhaçarem-se, bramidos e gritos
das hordas nazis, e o engenheiro Wiesenfeld disse-lhes: "Invejo-vos."
"Porquê?" - perguntouElla. "Porque vocês não são judeus". O
refugiado ficou três semanas e foram chegando "mais e mais".
Finalmente, o andar estava tão cheio, conta Ella, "que o meu marido e eu
fomos morar para o hotel".
Foram meses
de tensão trágica, e por vezes absurda. Erika, uma jovem de 19 anos, a última
judia que esconderam, fê-los passar o susto de vida deles, quando, farta da
rotina da vida clandestina, de estar fechada e de apanhar calor, resolveu tomar
banho de sol nua, no parapeito da janela do "atelier" onde moravam os
Lingens. Os alunos de um liceu que ficava em frente do edifício pensaram que se
tratava de uma louca suicida e chamaram a polícia. "Não nos descobriram
por milagre" conta Lingens. Antes que os homens de uniforme forçassem a
porta do andar, chegou uma amiga da família, "completamente ariana",
que convenceu a polícia de que fora ela que estivera a tomar banho de sol.
Mas Ella
confiou demais na sorte e continuou a arranjar documentos falsos para que os
perseguidos pudessem partir para o exílio, acabando por ser denunciada à
Gestapo.
Médica à
força
Chegou a Auschwitz no fim do Inverno de 1942. Aí começou, pela primeira vez, a praticar medicina, no barracão das prisioneiras alemãs e austríacas doentes. Trabalhou às ordens de vários médicos, o último dos quais foi Mengele. Recorda o Dr. Rohde, um SS, que, para suportar as escolhas de vítimas para as câmaras de gás, no pavilhão dos doentes ou no cais da estação de caminho-de-ferro, "se embebedava até quase ficar inconsciente".
Chegou a Auschwitz no fim do Inverno de 1942. Aí começou, pela primeira vez, a praticar medicina, no barracão das prisioneiras alemãs e austríacas doentes. Trabalhou às ordens de vários médicos, o último dos quais foi Mengele. Recorda o Dr. Rohde, um SS, que, para suportar as escolhas de vítimas para as câmaras de gás, no pavilhão dos doentes ou no cais da estação de caminho-de-ferro, "se embebedava até quase ficar inconsciente".
Não havia
camas suficientes e os doentes dormiam aos três e aos quatro nos beliches.
Havia piolhos, epidemias de febre tifóide e grassava uma doença contagiosa
causada pela desnutrição, que perfurava a pele até aos ossos. "A minha
vida lá era como se me tivesse oferecido hoje como voluntária para combater uma
epidemia no Bangladesh ou no Ruanda, um trabalho esgotante, para ajudar as
pessoas, sem saber o que acontecia ao lado", diz Lingens.
Na pior
época da epidemia de febre tifóide, Lingens tinha a seu cargo 750 doentes.
"Foi justamente Mengele, que dividia o seu tempo entre as experiências
brutais com gémeos e anões e o trabalho de organização sanitária, que travou a
epidemia." Evacuou os 1500 doentes de um barracão e mandou-os para as
câmaras de gás. Desinfectou a sala vazia, mandou mudar os lençóis e outros
doentes, desinfectados e despiolhados, foram transferidos para o barracão.
Depois desinfectaram o pavilhão vazio e assim sucessivamente. "Realmente
travou a epidemia, mas não lhe passou pela ideia chegar ao mesmo resultado sem
assassinar 1500 pessoas", comenta Lingens.
Nos
pavilhões de judeus e ciganos, as pessoas não chegavam a morrer das epidemias.
Eram assassinadas. As mulheres grávidas eram enviadas para as câmaras de gás,
assim como os doentes e os sem forças para os trabalhos forçados. Foram muitas
as mães que preferiram asfixiar os seus bebés, para os poupar à morte em mãos
alheias, porque a maioria dos recém-nascidos eram afogados pelos guardas SS.
Recordações
angustiantesAuschwitz
foi a experiência central da vida de Lingens, e os fantasmas das pessoas que
conheceu na fábrica da morte acompanhá-la-ão até ao fim dos seus dias. Havia
médicos pouco escrupulosos que exigiam que os doentes com malária lhes dessem a
sua porção de pão, a troco de quinino. E houve mulheres que se transformaram em
prostitutas no bordel de Auschwitz, porque assim tinham direito a uma melhor
ração alimentar, a um duche diário e a uma habitação mais confortável.
Ainda hoje é
assombrada pelo fantasma da fome, ou pelo da jovem que não pôde ajudar, porque
recebera 25 chicotadas e fora obrigada a ficar de pé durante três dias e três
noites, com água fria até à cintura. Era o castigo para os que se atreviam a
fazer amor em Auschwitz e eram surpreendidos. Como também não consegue esquecer
o grito colectivo de 100 pessoas encerradas nas câmaras de gás e, "após 15
minutos", o silêncio absoluto. "Outra vez os gritos, depois o
silêncio, uma, duas, três vezes."
Numa noite,
EllaLingens e as suas companheiras contaram 60 viagens de um camião carregado
de cadáveres, das câmaras de gás até aos crematórios. Depois começava a sair
fumo pelas chaminés e o cheiro inconfundível dos corpos queimados espalhava-se
por todo o campo de Auschwitz.
Enquanto
centenas de milhares de pessoas se transformavam em cinzas, Mengele continuava
as experiências como um possesso,no seu pavilhão de horrores, uma antecâmara da
morte. Sessenta pares de gémeos foram abertos pelo seu bisturi e, de todos
eles, só sobreviveram sete pares.
O "Anjo
da Morte" era para Lingens "um cínico incrível", com uma
inteligência superior à do resto dos médicos SS, que tinha a preocupação de
fazer com que os irmãos morressem à mesma hora, pela mesma causa. Assim podia
comparar os órgãos, que enviava depois, conservados, para o Instituto de
Biologia Genética de Berlim, em pacotes com a inscrição "Urgente, Material
de Guerra".
Mengele
achava que as condições do campo eram más e introduziu, inclusive, algumas
melhorias, mas "assassinava a sangue-frio, sem nenhuns problemas de
consciência". Olhava com orgulho os "dossiers" com os resultados
das suas investigações e só lamentava que, no futuro, pudessem cair"nas
mãos dos bolchevistas".
EllaLingens
teve a sorte de não ser colocada no Pavilhão das Experiências, porque não teria
resistido. Para experimentar métodos de reanimação em pessoas congeladas,
Mengele baixava a temperatura do corpo das vítimas até aos limites da paragem
cardíaca, e depois tentava aquecê-las com cobertores ou cobrindo-as com mulheres
nuas.
Dava só água
do mar a beber aos prisioneiros, até morrerem de sede, para comprovar a
resistência do ser humano em caso de naufrágio. Os esqueletos das pessoas com
anomalias eram enviados como troféus para a colecção da Reichsuniversitât, em Berlim.
Ligava o peito das mulheres que tinham acabado de parir, proibindo-as de
amamentar os filhos, para determinar quanto tempo os recém-nascidos podiam
viver sem se alimentarem.
Os médicos e
os "outros"Um dia,
Mengele chamou EllaLingens o seu gabinete e disse-lhe que tinha uma informação
decerto surpreendente para ela. "Sabia que no seu pavilhão há relações
entre lésbicas?" perguntou. "Claro que eu sabia", lembra a
prisioneira. "E não faz nada para o impedir?" insistiu. "Era uma
situação impossível, fechavam mulheres jovens durante anos num ambiente onde
não havia nada que pudessem amar, uma criança, um animal, um flor, era tudo tão
asqueroso que qualquer ser humano se degradava", lembra Lingens.
Noutra
ocasião, o carniceiro de luvas brancas e botas de cabedal perguntou-lhe as
razões por que a tinham enviado para Auschwitz. Lingens respondeu que fora
denunciada por ter ajudado a tirar judeus do país. "Como é que se pode ser
tão imbecil ao ponto de pensar que isso é possível?" Ella atreveu-se a
responder que havia casos em que tinham conseguido, com dinheiro.
"Naturalmente que vendemos judeus", respondeu Mengele. "Seríamos
estúpidos se o não fizéssemos."
"Não
tinha razões para ter medo de Mengele", diz Lingens. Para ele havia duas
categorias de pessoas, "os médicos e os outros". Mengele representava
as duas caras de Mefistófeles. No meio dos corpos raquíticos e humilhados dos
prisioneiros, era um homem bem parecido, elegante, impecável, de uma cortesia
imperturbável para com as suas vítimas. Tão depressa salvava um judeu, porque
era médico, como atirava um recém-nascido para o lume, porque chorava demais,
com a mesma indiferença. Lingens não conseguia suportar Auschwitz, e pediu para
ser transferida para o campo de concentração de Dachau, outro inferno; mas se
algum dia a libertassem, ficaria mais perto de casa, para regressar. Mengele
não queria que ela saísse de Auschwitz, mas perante os rogos da prisioneira,
aprovou o pedido com indiferença. "Não quero entravar o seu caminho para a
felicidade", disse-lhe, como se Dachau fosse um paraíso.
Em
Auschwitz, EllaLingens perdeu a dignidade, passou fome e frio. Regressou a
Viena com o cabelo todo branco e foi um dos momentos mais duros da sua vida.
"Soube que o meu marido, julgando-me morta, tinha casado com outra, o meu
irmão tinha morrido, combatendo ao lado da Resistência, na Jugoslávia, a casa
dos meus pais fora bombardeada. O meu filho não me reconheceu e os meus
vestidos...", diz com um olhar fixo e um suspiro, "...estavam comidos
pelas traças".
Tradução de
Maria do Carmo Cary
Texto originalmente publicado no Expresso a 28 de janeiro de 1995, por ocasião do 50º aniversário da libertação de Auschwitz
expresso.sapo.pt
Texto originalmente publicado no Expresso a 28 de janeiro de 1995, por ocasião do 50º aniversário da libertação de Auschwitz
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