Últimos tempos da senhora Micaela
Um dia, ao final da tarde, saí da escola e
fui diretamente para casa do Tiago, o meu melhor amigo. Nesse dia, ele tinha
faltado às aulas. Bati à porta, mas ninguém atendeu. Telefonei-lhe, muito
aflito, o meu medo estava preso ao meu cérebro. Fiz-lhe inúmeras chamadas, mas
sem sucesso. Finalmente atendeu:
-Olha, Bruno, estou no hospital com a minha
avó. Os meus pais estão a caminho. Acho que é melhor ires para casa, pois vou
demorar.
Terminei a
chamada e regressei apressadamente para casa, pois estava uma ventania que
quase conseguia arranhar a pele. Passadas várias horas de espera, recebi um
telefonema inesperado:
-Bru...Bruno, vem para a minha casa,
preciso de desabafar contigo.
Ao ouvir
estas palavras, tive um mau pressentimento. Fui ter com o Tiago e ele
explicou-me a situação: a sua avó apanhara uma pneumonia, já numa fase adiantada.
Os pais do Tiago já tinham perguntado aos seus irmãos se queriam tratar dela
rotativamente, mas ninguém quis ajudá-la. O Tiago explicou-me a situação toda
com a voz embargada. Queria muito ajudá-lo, mas não sabia como fazê-lo.
A avó Micaela, de 75 anos, era uma senhora
muito corajosa e valente, sempre que o seu neto corria risco, era ela a sua
protetora, o seu escudo. Era uma idosa muito simpática, pois sempre que eu
visitava o meu amigo, dava-me um abraço forte e, muitas vezes, um miminho. Ela
tratava-me como se fosse o seu neto. Teve uma vida dura, era viúva, pois o seu
marido morrera na guerra colonial. Agora, os pais do Tiago estão a discutir
sobre o estado de saúde e o futuro da D. Micaela.
A velha senhora, farta da discussão do casal, interrompeu-os:
-Olhem, já chega. Parecem uns papagaios a
aborrecer-me! Deixem a minha cura para trás, que, de qualquer maneira, irei
morrer. É apenas uma questão do tempo. Também tenho alguns filhos infiéis que
não querem saber nada de mim, por isso, prefiro morrer mais cedo para não os
ver. Mais uma coisa, eu não quero passar esta última fase da minha vida cheia
de memórias dolorosas. O que podem fazer é levar-me a viajar para algum lado
que é muito melhor do que estar deitada na cama do hospital, cheia de tubos
enfiados no meu corpo.
O João e a Helena, os pais do Tiago, ouviram
atentamente o discurso da senhora. O João e o Tiago não conseguiram reter as lágrimas,
e deviam respeitar a escolha de Micaela.
A família, após algumas divergências,
chegou a um acordo e decidiram viajar até França, e, quem sabe, talvez fossem
estes os últimos dias de vida daquela sobrevivente.
Convidaram-me para os acompanhar, porque se
aproximavam as férias de verão.
Daí a duas semanas, preparámos as malas e
rumámos a França, de carro. Como a viagem era demorada, decidimos fazer uma
paragem mais longa durante o percurso. Então, parámos em Burgos, uma cidade
espanhola. Aproveitámos para descansar e visitar a cidade. Nas ruas, passavam
multidões que pareciam apertar as estradas. Visitámos um dos monumentos mais fabulosos
da cidade, a catedral. Permanecemos nesta cidade por volta de cinco dias. Decidimos
não fazer mais nenhuma paragem até chegar a Paris.
A meio do caminho, o Tiago exclamou:
-Que belos são os campos de searas! Nunca
tinha reparado!
-É normal. Agora estás mais livre,
portanto, reparaste nesses pormenores- respondeu D. Micaela, repleta de experiência
e sabedoria.
Após ter
proferido estas palavras, começou a tossir sangue. A doença piorara. Ninguém
estava à espera que isto acontecesse assim tão cedo.
Chegámos, finalmente, a Paris. Uma das
maiores e das mais importantes cidades do mundo. Ficámos surpreendidos com as luzes
da cidade durante a noite. Era tudo tão diferente! Como já era muito tarde, só
fomos explorar a cidade das luzes no dia seguinte. Visitámos inúmeros museus,
monumentos... e lá estava ela, a Torre Eiffel. Como a cidade era grande, pretendíamos
ficar duas semanas neste local. Regressámos mais cedo do que o previsto a
Portugal, porque a senhora Micaela, não parava de tossir sangue e estava cada
vez mais debilitada. Foi uma viagem extenuante! Chegámos, finalmente, à Guarda,
terra natal da D. Micaela.
No dia seguinte, a avó do Tiago foi ao
canil e escolheu um cãozinho muito ternurento. Quando chegou junto do neto
disse-lhe:
-Olha, meu netinho, quando eu morrer, não
quero que fiques triste. Estás a ver este cãozinho? Ele acompanhar-te-á, em vez
de mim, o resto da tua infância. Ouviste bem?
Estas
foram as suas últimas palavras. O Tiago ficou desolado, acariciava as mãos da
avó para sentir os últimos calores do seu corpo. Passados poucos dias, foi o
funeral da senhora Micaela. Participaram todos os seus filhos, filhas, netos e
netas. Alguns daqueles filhos da D. Micaela nunca a visitaram, mas agora
mostravam-se arrependidos das suas atitudes, embora já fosse tarde demais.
A partir do falecimento da sua avó, o Micas, o cão do Tiago, parecia que tinha atitudes idênticas às da senhora Micaela. Então, o Tiago ficava estupefato com as reações do seu animal de estimação e pensava que a sua avó se transformara num cão para acompanhar a sua infância e adolescência.
Bruno
Chen, número 2, 7.ºF, Escola Carolina Beatriz Ângelo